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01 de Fevereiro 2023

Neurofibromatose: IPO acompanha 500 doentes

Empenho de várias especialidades permite acompanhamento de condição genética rara associada ao aumento do risco de tumores. Novo tratamento revela-se promissor.

Neste início de 2023, o Instituto Português de Oncologia de Lisboa Francisco Gentil (IPO Lisboa) está a seguir mais de 500 doentes com neurofibromatose, uma condição genérica rara do sistema nervoso. É o hospital do país com mais doentes em acompanhamento e tal deve-se, principalmente, a uma abordagem inovadora iniciada em 2018 pelo Serviço de Neurologia. No final do ano, estima-se que serão mais de 600 os doentes em seguimento.

 

“Os doentes diagnosticados com neurofibromatose têm um risco acrescido de desenvolver vários tipos de tumores”, explica o neurologista João Passos, responsável pela consulta. Para tentar evitar que estes tumores se transformem em doença maligna, os utentes são seguidos com o apoio de vários serviços do IPO Lisboa.

 

“Esta vigilância dos doentes é um aspeto particularmente importante, porque envolve várias especialidades: a radiologia, que é uma especialidade fundamental para garantirmos a monitorização destes doentes, as cirurgias Geral, de Cabeça e Pescoço, Outros Tumores Sólidos (OTS), Plástica, Otorrinolaringologia (ORL)”, prossegue o médico. “Todas são chamadas para ajudar a definir o plano ideal para estes doentes.”

Enfermeira Cristina Lacerda, coordenadora da consulta de enfermagem neurofibromatose e do Estudo AZ PASS;
Dr. Duarte Salgado, diretor do Serviço de Neurologia; João Passos, Assistente de Neurologia; enfermeira
Mafalda Ferreira , enfermeira da consulta de neurofibromatose.

A cirurgia é o tratamento de referência (“gold standard”) e a remoção completa da lesão pode garantir a cura do doente. Mas podem ocorrer alterações de outro tipo, que necessitam de seguimento nos serviços de Endocrinologia ou de Dermatologia.

 

João Passos afirma que esta abordagem “é algo novo”. “Daquilo que vou conversando com os meus colegas, a nível mundial, não é algo que esteja implementado”, conta. Esta visão, que o especialista considera ser diferente de outros centros médicos, é “mais interventiva”. “Fazemos mais exames aos doentes, desde a infância até à idade adulta, tentamos compreender qual a carga tumoral, estratificá-los e seguimo-los de acordo com o risco oncológico que antecipamos em cada um dos doentes”, enuncia.

Os doentes que desenvolvem neurofibromas plexiformes (tumores benignos no sistema nervoso periférico associados à neurofibromatose tipo 1 – NF1) são uns dos destinatários desta vigilância, “na tentativa de anteciparmos ou podermos prevenir as alterações malignas que afetam cerca de 10% das pessoas com NF1 e que são uma causa de mortalidade e de morbilidade importante”.

 

A consulta também vigia mulheres com NF1 “devido ao risco aumentado” de desenvolverem neoplasias da mama. “Quando são identificadas lesões suspeitas são encaminhadas para a clínica multidisciplinar da mama”. Quanto aos restantes tipos de neurofibromatose, o IPO Lisboa também acompanha alguns doentes, que, por ser uma condição ainda mais rara, são em número reduzido.

Desde 2022 que a consulta conta com a participação da enfermeira Mafalda Ferreira, para além do especialista. “Os doentes são também avaliados pela equipa de enfermagem, numa multidisciplinaridade que é particularmente relevante.” O trabalho de enfermagem recai sobre questões relacionadas com a qualidade de vida, escalas de dor, aferição de alguns aspetos socioeconómicos destes doentes para que, em caso de necessidade, sejam encaminhados para o Serviço Social do Instituto.

 

“Há famílias e pessoas que têm um sofrimento atroz com esta doença. Este trabalho de cuidar a vários níveis é o aspeto que nos distingue e remete um pouco para aquela ideia do IPO Lisboa como sendo um hospital mais familiar. Para isto contribuem os nossos administrativos, o nosso Serviços Social, e penso que os doentes também se sentem mais acarinhados”, destaca João Passos.

Meia centena de doentes recebem medicamento novo

 

“Durante algumas décadas, o tratamento para a NF1 aqui no IPO Lisboa focou-se muito no tratamento dos gliomas das vias óticas das crianças entre os cinco e seis anos. O que estamos a fazer diferente, desde 2018, é que agora também tratamos os neurofibromas plexiformes”, esclarece João Passos.

 

Tal mudança deveu-se em parte ao desenvolvimento de um novo medicamento, que “é inibidor de uma via molecular específica que está alterada nos doentes com NF1. E é por causa desta via estar alterada que estes doentes têm risco aumentado de desenvolver tumores”. O medicamento tem um impacto positivo nos neurofibromas plexiformes, através da redução das dimensões ou da paragem do seu crescimento. No entanto, de acordo com os estudos disponíveis, não é claro que impeça o processo de transformação dos tumores benignos em malignos e não é eficaz quando os tumores já iniciaram o processo de malignização.

Atualmente são tratados 50 doentes com este medicamento, na maioria crianças (mais de 40 têm idade pediátrica). “O medicamento é bastante caro e a monitorização dos doentes em tratamento requer múltiplos exames e avaliações por diferentes especialidades. Constitui um esforço institucional enorme”, sublinha o médico. “Os doentes que começam o tratamento mais precocemente são aqueles que parecem retirar maior benefício. Temos crianças que começaram o tratamento aos três anos e o que se verifica é que as deformidades, que se encontram nos doentes mais velhos, nem sequer chegam a ocorrer.”

Esta expansão das opções de tratamento e de cuidados para esta população, acrescenta, “resulta de um esforço institucional concertado e muito significativo”. “Para um doente ser tratado são necessários exames de imagem, avaliações médicas e cirúrgicas, análises, ecocardiogramas e o medicamento. O conhecimento gerado no IPO ao longo dos anos é único e envolve várias especialidades.

 

Esta forma de acompanhar os doentes assemelha-se ao trabalho realizado pelos Centros de Referência já existentes (no IPO Lisboa e em outros hospitais) dedicados a outras doenças, embora não exista nenhum relacionado com a neurofibromatose.

 

“Esta discussão talvez venha a ser importante para a alocação de recursos. Se formos centro de referência, poderemos, provavelmente, ter outro tipo de canais de financiamento que serão úteis para manter os cuidados”. Se esta formalização ocorrer, explica, poderia ser implementada no IPO Lisboa uma consulta multidisciplinar. “Poder ter todas as pessoas à mesa, a discutir no mesmo momento, acho que seria uma mais-valia. Atualmente, essa discussão ocorre de forma faseada”.

 

Ao nível da investigação, a equipa está a realizar uma análise retrospetiva dos doentes tratados até final de 2022, para dar resposta a questões como: quais os doentes que estão a ter mais benefício do tratamento, quais os efeitos secundários relacionados com a terapêutica, quantos doentes e por que razão, suspenderam o tratamento.

 

A enfermeira Mafalda Ferreira é também a profissional que está a acompanhar a participação do IPO Lisboa num estudo multicêntrico que pretende aferir a segurança a longo prazo do medicamento. “Somos o maior centro recrutador neste momento a nível europeu, já recrutámos seis doentes. E isto está a acontecer por causa da enfermeira Mafalda, que está a acumular a função ‘study nurse’. Ou seja, não só apoia os doentes na consulta como depois também gere toda a parte burocrática do estudo: inserção dos dados nas plataformas, consentimentos informados, ela tem tudo em ordem e isto consome mesmo muito tempo”.