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20 de Julho 2022

35 anos de transplante de medula no IPO Lisboa

Em 2021 o Instituto realizou 109 transplantes de medula e no primeiro semestre de 2022 já fez 56. Tratamento continua a beneficiar da evolução clínica e tecnológica.

Há 35 anos que se fazem transplantes de medula no Instituto Português de Oncologia de Lisboa Francisco Gentil (IPO Lisboa). Foi o primeiro hospital que os fez em Portugal, corria o ano de 1987. Em 2021 foram realizados 109 e 56 no primeiro semestre de 2022. Os anos de experiência e a evolução clínica e tecnológica não tiram complexidade a este tratamento.

 

Desde logo pelo tempo que os doentes passam hospitalizados antes e após o transplante. Sempre em isolamento, pois a pandemia por COVID-19 ainda não permite a presença de um acompanhante, a não ser que sejam crianças. Podem depois seguir-se mais dias de internamento, sem isolamento, em quartos resguardados. A recuperação é sempre longa e exige vindas regulares ao hospital, pois é preciso ter a certeza de que as células transplantadas não são rejeitadas pelo organismo do doente que as recebeu e acautelar quaisquer infeções.

 

Para evocar o Dia Nacional da Doação de Órgãos e da Transplantação, que se assinala a 20 de julho, o médico Nuno Miranda, diretor da Unidade de Transplante de Medula (UTM) do IPO Lisboa, faz um ponto de situação dos tratamentos e das novas terapias que a evolução clínica tem trazido para esta área.

Dos 109 transplantes de medula realizados em 2021, 52 foram autólogos (ou seja, as células foram colhidas ao próprio doente antes de iniciar o tratamento – autotransplante) e 57 alogénicos (foi preciso encontrar um dador compatível na família mais próxima ou então através do registo internacional de dadores). Em 2014, o IPO Lisboa também começou a fazer transplantes haploidênticos, em que o dador pode ser apenas 50% compatível.

 

Uma técnica que, segundo Nuno Miranda, veio “aumentar em muito o ‘pool’ de doentes com dador e permite que se diminua o tempo para realizar a transplantação”. Porém, “um dador completamente compatível continua a ser primeira escolha”, frisa o especialista. “Mesmo esta disparidade genética de um alotransplante pode ser utilizada em benefício do doente, para ter uma resposta imune mais efetiva contra células neoplásicas”.

 

O nome transplante de medula tornou-se o mais comum deste tratamento, pois era na medula óssea dos dadores que se colhiam inicialmente as células progenitoras hematopoiéticas (células estaminais com potencial para dar origem a todos os tipos de células sanguíneas), retiradas do osso da bacia dos dadores, na maioria dos casos. Atualmente esta técnica é menos utilizada. As células são agora colhidas por citaferese (uma técnica que permite retirar as células do sangue periférico do dador, que as separa por centrifugação e devolve o sangue ao dador).

Dos 2 aos 68 anos

 

Do lado do doente, o processo (se não se tratar de um autotransplante) inicia-se com o internamento uns dias antes para que seja submetido a quimioterapia intensiva que elimina a maior parte das células malignas.

 

Ao contrário do transplante de órgãos, o transplante de medula não se realiza no Bloco Operatório. Os doentes recebem as células progenitoras hematopoiéticas (ou células-mãe) através do sistema circulatório, como se fosse uma transfusão de sangue. E estas fixam-se na medula óssea para se multiplicar e dar origem a novas células sanguíneas. Para que as novas células não sejam rejeitadas (doença do enxerto contra o hospedeiro), os doentes tomam imunossupressores, o que aumenta o risco das infeções, e daí a necessidade de tantos cuidados.

 

Dos transplantados em 2021, o doente mais novo tinha apenas 2 anos de idade e o mais velho 68. Apesar da polivalência da UTM do IPO Lisboa, em que se transplantam adultos e criança com doenças oncológicas, ou não, e com qualquer fonte de células (medula óssea, sangue periférico, sangue de cordão umbilical e dadores haploidênticos), característica que a diferencia das restantes unidades, Nuno Miranda diz que a resposta ainda fica aquém das necessidades.

O IPO Lisboa tem atualmente cerca de 90 doentes a aguardar por um transplante, alguns deles já com dador identificado. O problema é a capacidade das instalações e a falta de profissionais. “Em termos de recursos humanos temos obviamente falta. Esta é uma área muito exigente, tanto em quantidade de trabalho como em motivação”, explica.

 

“Se em termos de transplantes autólogos a nossa prestação é semelhante aos outros países europeus, em transplantação alogénica fazemos exatamente metade do que deveríamos fazer”, revela o médico, acrescentando que com a configuração atual da UTM “não é possível ultrapassar os 120 por ano”.

 

Apesar de a UTM ter sido alvo de obras de beneficiação em 2019, o que melhorou significativamente os espaços de internamento – passou de sete para 12 quartos de isolamento, com casas de banho e camas para os acompanhantes – e áreas de trabalho mais funcionais, Nuno Miranda reconhece que “o espaço é limitado, em particular para o período pós-transplante”, que é essencialmente o “início de um ciclo novo para estes doentes, com necessidades particulares de acompanhamento e vigilâncias”.

“Para nós, o reinternamento de um doente transplantado é uma enorme dificuldade” frisa, destacando que a curto prazo vão ser precisos “mais espaços de consulta” e “circuitos independentes para dadores e doentes”.

 

O especialista destaca que “o caminho no sentido dos tratamentos ambulatórios está a ser percorrido há vários anos, com um pequeno programa de transplante alogénico em ambulatório, com zero dias de internamento. A expansão deste programa a outras patologias depende de mais recursos humanos”.

 

O pré e o pós-transplante são feitos no Hospital de Dia da UTM. A enfermeira-chefe do serviço, Elsa Oliveira, também identifica a falta de camas e de pessoal no serviço como fator de constrangimento. “Raramente conseguimos ter as 12 camas (de isolamento) preenchidas” por falta de profissionais. Se a UTM estivesse a funcionar em pleno, seria difícil dar resposta no Hospital de Dia. A enfermeira fala do elevado “impacto emocional” que atinge os profissionais quando estão neste serviço, além de baixos salários e da necessidade de revisão das carreiras, problema transversal nas profissões da saúde. Só desde janeiro, avança, saíram dez enfermeiros da UTM.

17 tratamentos com células CAR-T

 

Além dos transplantes haploidênticos, a inovação trouxe também para esta área novas formas de terapêutica celular. “Desde as células CAR-T, que permitem usar as células do próprio doente modificadas para destruir um tumor, a métodos de terapia genética, com correção dos defeitos genéticos ‘in vitro’, e utilização das células progenitoras hematopoiéticas assim modificadas”, esclarece Nuno Miranda.

 

No IPO Lisboa grande parte dos tratamentos com estas células CAR-T passa pela UTM. Já foram aqui tratados 17 pacientes, mas o médico considera ser ainda prematuro avançar com taxas de sucesso. A seleção dos doentes, que é feita em conjunto com o Serviço de Hematologia, a colheita das células e o seu eventual congelamento, a quimioterapia, antes da infusão das células, o internamento dos doentes para as receber, o acompanhamento até ao 30.º dia (período de maior risco) após o tratamento, bem como a monitorização a longo prazo são procedimentos realizados na UTM.

 

Um dos problemas associados aos tratamentos com células CAR-T, bem como com à quimioterapia, é a sua toxicidade. Nuno Miranda esclarece que a preocupação em reduzir a toxicidade e aumentar a eficácia é cíclica. “Penso que atualmente estamos na fase do ciclo em que nos preocupamos mais com a eficácia. Mas obviamente estes dois fatores são indissociáveis e não é adequado aumentar a eficácia a qualquer custo”, remata.